sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Santa Chuva (by Nati)

Pela cor do céu já era de se notar que a tempestade não faria ainda muito suspense naquela tarde abafada. Pelas calçadas as pessoas já apertavam o passo para correr da chuva. O vento já bagunçava os detalhes meticulosamente construídos nas aparências dos pedestres de das construções. Cinco minutos antes da tempestade, o céu já prometia desabar sobre aquelas cabeças tão ocupadas que fugiam, como se a desordem que a água pudesse trazer ameaçasse o perfeito cumprimento dos seus importantíssimos deveres.

As passadas dos meus pés, cada vez mais, zombavam da pressa alheia e o ritmo marcado pelo ruído dos saltos traduzia, agora, cadências mais frouxas. O atraso do meu andar era, em parte, motivado por um sentimento de superioridade que me distanciava daquelas pobres pessoas-formigas e, em parte, por um desejo latente de ser vítima indefesa daquela tempestade.

Tive certa inveja do ladrilho da calçada que ganhou a primeira gota da chuva, inveja que durou pouco, pois, logo, o vento tratou de espalhar minúsculas gotículas por toda a parte. Guarda-chuvas brotaram dos mais diversos cantos e, apesar de colorirem a cena cinza, esconderam os rostos daqueles corpos tensos que teimavam em fugir da água.

O barulho descompassado da chuva sobre a cidade foi o som que embalou o meu prazer ao sentir as primeiras gotas geladas deslizarem sobre a minha pele seca. Prazer esse que não veio do arrepio frio que percorreu todo o corpo, mas que nasceu da simples percepção de que esse corpo ainda pode se arrepiar. Agradeci o vento fresco que despenteou meus cabelos desordenando a pretensiosa imagem de controle, a qual eu dedico preciosos momentos das minhas manhãs. Por alguns segundos, andei na chuva permitindo que ela causasse em mim qualquer dano que lhe coubesse, assim mesmo, só pelo prazer de me entregar como vítima daquilo que todos fugiam. Só para deixar que ela bagunçasse o quanto lhe conviesse o que havia por fora e por dentro de mim.

Porém, também a chuva mostrou sinais de humanidade quando, de forma traiçoeira, começou a minguar. As gotas ficaram cada vez mais finas e leves, o céu começou a clarear, e o barulho cessou. Os guarda-chuvas sumiram, os rostos reapareceram e as rotas foram pouco a pouco sendo retomadas. A minha caminhada também tinha alcançado sua conclusão. Subi os degraus do prédio de escritórios e, só quando me deparei com o espelho do elevador é que percebi o desalinho de minha aparência. Porém, não me ajeitei. Quis carregar comigo as marcas que aquela santa chuva tinha deixado em mim.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Os Humores da Ostra (by Nati)

Ontem, após ouvir uma longa coleção de elogios sobre o seu último texto postado, a Ana justificou o seu sucesso com uma máxima que ultimamente tem sido bastante familiar ao nosso grupo: “ostras infelizes produzem pérolas”. A frase causou uma inquietação grande o suficiente para me levar a encontrar tempo para escrever esse texto. Saliento que essa metáfora das ostras já não me era novidade, porém, nas outras ocasiões em que ela fora invocada sempre assumiu o caráter de desculpa para não produzir nada de genial, mas nunca a sua versão oposta havia sido usada para justificar um sucesso.
A causa maior que me inquietou (e que continua a me inquietar) é o fato de eu não conseguir refutar a veracidade da teoria que existe por trás da metáfora das ostras. Durante um bom tempo da minha vida eu busquei o significado da palavra “arte”, uma parcela dessa busca foi motivada por uma equivocada escolha profissional (tema para um outro texto), outra parcela – talvez a maior – foi motivada por uma curiosidade bastante íntima. O resultado desse estudo me levou a uma aporia, a qual a minha pouca experiência intelectual não foi capaz de entender. Entretanto, restou-me uma impressão bastante pessoal de que o que define o caráter artístico de uma obra é justamente a emoção do artista no momento de sua criação. Atente para o fato de que eu não estou me referindo ao juízo de valor feito a partir de determinada obra de arte, eu estou apenas colocando o que, na minha opinião, difere o que é arte do que não é arte.
Creio que a essa altura você já tenha se convencido de que eu concordo com a teoria das ostras, portanto, agora vou explicar o motivo pelo qual essa verdade me incomoda.
Eu vivi durante mais de cinco anos espremendo sofrimento para produzir algo de “artístico”, buscava a “arte” nascida do esforço, do suor de da dor., eu queria aquele tom melancólico-poético dos artistas que criam obras fantásticas à sua própria revelia. Fui um fracasso. Atualmente, eu adotei uma nova concepção de vida, a qual me faz bastante feliz, porém, continuo a apreciar com especial preferência a arte dos infelizes. Logo, se eu me convencer facilmente de que a máxima “ostras felizes não fazem pérolas” conjuga uma verdade, então estarei admitindo que meu destino “artístico” está fadado às miçangas. Injustiça! É esta a fonte de tamanha inquietação perante a justificativa dada pela Ana. Talvez, a minha única saída seja esforçar-me para calcular friamente a medida da felicidade desta ostra aqui para, só então, atirar-me ao exercício de compor meus textos. Tento tomar como exemplo a disciplina de Stendhal apresentada em sua confissão:

“Esforço-me o máximo possível para ser seco. Quero impor silêncio ao meu coração, que acredita ter muito a dizer. Sempre temo só ter escrito um suspiro quando creio ter registrado uma verdade”.

O problema é que adaptar os humores da ostra, calcular a relevância de um texto e ponderar filosoficamente sobre as proposições abordadas é um tarefa extremamente chata !!! Portanto, peço licença aos leitores (todos eles: Ana e Ju) para informar que os meus textos são composições de suspiros e miçangas, e que ninguém espere pérolas dessa ostra aqui...